A repetição do indébito é uma medida processual e também um direito. O termo “indébito” significa “aquilo que não é devido”, “indevido” ou “imerecido”. O termo “repetição”, por seu turno, no contexto jurídico, significa “restituição” ou “devolução”.
Assim, a repetição do indébito é uma medida que visa à restituição de um valor que foi desembolsado sem que houvesse propriamente uma dívida.
Trata-se de um instituto jurídico muito comumente aplicado nas relações de consumo, visto que, por vezes, prestadores de serviços e fornecedores de produtos realizam cobrança de valores já pagos pelo consumidor, ou mesmo exigem pagamento por serviços que sequer chegaram a ser contratados.
No âmbito das relações consumeristas, a função precípua deste instituto jurídico é a de se evitar o enriquecimento sem causa do fornecedor, que decerto não pode valer-se de sua posição de poder em relação ao consumidor para exigir aquilo que não é devido. Portanto, a repetição do indébito se presta a evitar condutas abusivas.
O fundamento legal da repetição do indébito na seara do Direito do Consumidor é o parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), que prevê, até mesmo, a possibilidade de o valor ser restituído ao consumidor em montante equivalente ao dobro do que foi cobrado em excesso, exceto naqueles casos em que o fornecedor apresente engano justificável.
O dispositivo por muito tempo gerou divergência de interpretação entre tribunais e até mesmo entre algumas Seções do STJ.
Entretanto, em 21/10/2020, a Corte Especial do STJ julgou seis processos – são eles: EAREsp 676.608 (paradigma), EAREsp 664.888, EAREsp 600.663, EREsp 1.413.542, EAREsp 676.608, EAREsp 622.697 –, firmando entendimento de que o artigo deve ser interpretado de maneira a não se exigir do consumidor a demonstração da motivação maliciosa daquele que realiza a cobrança indevida, bastando a demonstração de que a cobrança contrariou a boa-fé objetiva.
Neste caso, o fornecedor ficará obrigado a restituir o dobro do que foi indevidamente cobrado do consumidor, acrescido de juros de mora e de atualização monetária.
Outra decisão igualmente relevante para a compreensão do tema é o acórdão proferido pela 3ª Turma do STJ nos autos do REsp 1645589, em 05/02/2020.
De acordo com este precedente, mesmo que o consumidor não tenha efetuado o pagamento pela dívida, se houver cobrança judicial do débito – isto é, se o credor acionar o Poder Judiciário contra o suposto devedor –, haverá direito à repetição do indébito em dobro.
Este entendimento decorre da confrontação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor com o art. 940 do Código Civil.
O art. 940 do Código Civil regula aquelas situações em que a cobrança é realizada judicialmente, aplicando-se mesmo que o pagamento não tenha sido efetuado. Este dispositivo aplica-se, tradicionalmente, às relações civis, e não às relações de consumo.
Por sua vez, o art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor é próprio para as relações de consumo, e aplica-se caso a cobrança ocorra extrajudicialmente e caso o indébito chegue a ser quitado pelo consumidor.
Com base nestes dois dispositivos de lei, o STJ decidiu que, mesmo em se tratando de relação de consumo, se o consumidor não chega a pagar o valor indevido – o que afasta a incidência do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, que exige o efetivo pagamento –, é possível a aplicação do art. 940 do Código Civil, se a dívida tiver sido cobrada judicialmente.
Isto porque, em regra, quando há relação de consumo, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor. No entanto, se a norma do Código Civil se mostrar mais benéfica ao consumidor que o próprio Código de Defesa do Consumidor, esta deverá ser aplicada em ser lugar. Diante disso, o Tribunal entendeu pela possibilidade da aplicação da norma civil a uma relação de consumo.
Contudo, de acordo com o precedente de fevereiro, para que o consumidor cobrado indevidamente pela via judicial fizesse jus à repetição do indébito em dobro, seria necessário que este demonstrasse que a cobrança decorreu de má-fé, ou seja, de motivação maliciosa do pretenso credor.
Como se percebe, o precedente de fevereiro de 2020 exige a comprovação da motivação maliciosa daquele que realiza a cobrança indevida. Por outro lado, o precedente de outubro de 2020 afasta a necessidade de que aquele que sofre a cobrança indevida demonstre tal intenção, bastando que evidencie a contrariedade da cobrança em relação à boa-fé objetiva.
Portanto, é possível afirmar que o julgamento realizado em 21/10/2020 divergiu, em parte, daquele realizado em 05/02/2020, pacificando uma questão que ainda se mostrava controversa em questão de apenas alguns meses antes.
Referências:
BRASIL. Lei nº 8.078/1990
BRASIL. Lei nº 10.406/2002
https://www.conjur.com.br/2020-out-21/devolucao-dobro-cobranca-indevida-nao-exige-ma-fe-stj